David Vai Guiar (1972)
25/7/2020
Juventude transgressora
Na década de 1970 houve uma interessante leva de produções fílmicas em Teresina. Películas com dinheiro do Estado como Guru das Sete Cidades, outras feitas amadoristicamente em super-8 mm como O Terror da Vermelha e Adão e Eva: do Paraíso ao Consumo, e as de cunho “denúncia social” produzidas pelo Grupo Mel de Abelha. A função de todas elas aqui será apenas como registro histórico da cidade de Teresina.
Desse modo, David Vai Guiar cumpre bem esse papel de mostrar a capital piauiense, embora seja só mais um dos filmes setentistas que visava transgredir a sociedade e os costumes tradicionais (Nota 1). É fruto da juventude afeiçoada a minissaias, blusas curtas, baseados, cabelos longos e motos. Nos dizeres de seu próprio realizador, Durvalino Couto, “eu quis filmar os malucos de Teresina, […] gente fumando maconha [e] tudo que parecia tradição era para romper“ (Nota 2).
1. Cartaz do filme / 2. David Aguiar / 3. Carrinho do picolé Maguary / 4. Bar Gelatti.
(1972 / Acervo digital Teresina Antiga)
Hippie de família tradicional
David Machado de Aguiar, que dá nome ao filme, nasceu em 1949, em Teresina. Vinha de uma família tradicional cujo avô era Eurípedes de Aguiar, governador do Piauí de 1916 a 1920. Seu pai, José Lopes de Aguiar, manteve até 1967 a conhecida farmácia Botica do Povo que ficava na Praça Rio Branco.
Gostava de pintar e fez vários quadros tanto aqui como no tempo que passou em Ouro Preto (Minas Gerais). Ficou conhecido pela alcunha de o primeiro hippie de Teresina e, segundo Durvalino Couto, “difundiu na juventude o hábito de fumar maconha e fazer amor livre”. Quase sempre estava com sua moto Suzuki verde ou em um Jeep Willys amarelo nas movimentadas ruas da capital ou mesmo nas do bairro de Fátima onde morava (Fora da zona urbana, na época).
Morreu assassinado em 1º de janeiro de 1981, em Fortaleza. Na capital cearense, decorava uma barraca na Praia do Futuro para o Réveillon. Dias antes havia se envolvido em uma confusão com um soldado. Conhecido por ser bom de briga, havia lhe dado uma surra (Ou cabeçada, conforme algumas fontes). O soldado não deixou barato e no fatídico dia atirou em David enquanto este dormia na praia. Está sepultado no Cemitério São José, em Teresina e, em 1985, virou nome de rua no bairro São Joaquim (Zona Norte).
Cena do filme David Vai Guiar
em Teresina – Avenida Frei Serafim.
Obs.: originalmente o filme tem uma música do grupo Pink Floyd que foi removida para evitar bloqueio do vídeo.
(1972 / Acervo digital Teresina Antiga)
Teresina no filme
Produzido de forma precária, David Vai Guiar não oferece uma sequência no estilo “começo, meio e fim” nem mesmo conforto a quem assiste. A câmera parece registrar tudo e todos sem nexo algum, embora haja um roteiro que tenta nos apresentar uma espécie de guia pela cidade, um grupo de jovens que desrespeita sinais de trânsito e toda uma ordem preexistente, além de um inspetor que persegue alguns deles.
A maioria das cenas foi filmada em Teresina, em 1972, exceto uma ou outra como a de um prédio abandonado com a inscrição “Malucos por mocotó” gravada em algum lugar de Timon (Maranhão). Quase impossível identificar todas, primeiro por causa da mudança das edificações ao longo dos tempos e porque algumas foram filmadas em locais não habituais dos subúrbios teresinenses ou mesmo do Centro como a casa de muro baixo do personagem inspetor Pereira na rua Areolino de Abreu, hoje quase totalmente repleta de lojas.
Logo na cena inicial vemos David Aguiar em seu Jeep Willys na Avenida Antonino Freire, perceptível uma vez que vemos o Palácio de Karnak e a frente da Igreja São Benedito. Adiante e não distante dali, a Avenida Frei Serafim bem movimentada onde vemos a mesma igreja ao fundo, as antigas fontes luminosas no canteiro central, e o trecho próximo ao cruzamento com a rua Coelho de Resende sem o semáforo nessa época.
Cena do filme David Vai Guiar – Zona Norte de Teresina.
Vemos o Instituto de Educação Antonino Freire, a rua Rui Barbosa, o Cemitério São José,
e a avenida Miguel Rosa com destaque para o antigo viaduto do Mafuá.
Obs.: originalmente o filme tem uma música do grupo Pink Floyd que foi removida para evitar bloqueio do vídeo.
(1972 / Acervo digital Teresina Antiga)
Outras imagens do Centro incluem a clássica travessia Teresina-Timon pelo rio Parnaíba através das barcas, e uma tomada da Praça Pedro II com vistas ao fundo para o Cine Rex, antiga casa de cinema de Teresina antes dos shoppings centers. Ali há a exibição de A Fera (Nota 3), que foi inspiração para o primeiro nome pensado para o filme uma vez que fera era uma gíria para maluco. Por esse motivo, vez ou outra surgem na tela imagens de leões como um no cartaz que promove a estreia do Circo Real Americano.
David Vai Guiar também nos mostra cenas de uma Teresina que passou e não volta mais: cinema de rua; um vendedor com seu carrinho do picolé Maguary; modelos de carros hoje fora de fabricação aos montes nas vias como Fuscas, Jeeps e Kombis; e o bar Gelatti, na Avenida Frei Serafim, lugar de encontro da juventude transgressora da cidade.
Também há cenas nos bairros da Zona Norte. Inicialmente a Matinha com destaque para o Instituto de Educação Antonino Freire sem as árvores na praça que hoje escondem sua fachada, o Cemitério São José e a rua Rui Barbosa. Em seguida estamos na Avenida Miguel Rosa no trecho do viaduto do Mafuá que foi modificado por outro com a inauguração do Metrô em 1991.
Minutos depois já estamos no bairro Matadouro com a antiga sede do Matadouro Municipal que futuramente seria o Teatro do Boi, e a primeira Fábrica de Asfalto de Teresina funcionando a pleno vapor na região do atual Clube do Gari, no terreno entre as ruas Rui Barbosa e Paranaguá.
Cena do filme David Vai Guiar
em Teresina – Bairro Matadouro.
Obs.: originalmente o filme tem uma música do grupo Pink Floyd que foi removida para evitar bloqueio do vídeo.
(1972 / Acervo digital Teresina Antiga)
Situação
David Vai Guiar foi filmado em super-8 mm assim como muitos outros da mesma época em Teresina. Descontando os créditos iniciais e finais inseridos mais tarde, o filme tem um pouco mais de 16 minutos de duração o que equivalia a cinco rolos de super 8 (Cada rolo do formato equivalia a 3 minutos e 20 segundos).
Foi primeiramente exibido dentro do círculo de seus realizadores, isto é, em projeções privadas, entre amigos. Posteriormente foram inseridas músicas do álbum The Dark Side of the Moon, do grupo britânico Pink Floyd: Speak to me, Breathe, On the run, Time e The great gig in the sky (Nota 4). Conseguiu sobreviver ao tempo ao contrário de Adão e Eva: do Paraíso ao Consumo que sumiu no processo de sonorização
Cena final do filme David Vai Guiar no Cine Rex.
Obs.: originalmente o filme tem uma música do grupo Pink Floyd que foi removida para evitar bloqueio do vídeo.
(1972 / Acervo digital Teresina Antiga)
Décadas atrás, Carlos Galvão converteu o filme para o formato VHS. Lançou-se também um DVD pela Sinttese Digital constando seis títulos em super-8 e entre eles estava David Vai Guiar (Nota 5). A primeira impressão é de que o lançamento nunca foi feito para vendas, mas sim para preservação sendo que admiradores recopiaram o material para tê-lo guardado. Entretanto, o filme é encontrado com relativa facilidade na internet em plataformas de compartilhamento de vídeos como Youtube e Dailymotion.
Interessante que Durvalino Couto conta que uma cena se perdeu devido às inúmeras exibições que a produção teve. Refere-se ao final do filme quando Lina do Carmo (Hoje atriz de dança vivendo na Europa) “caminhava em frente ao Rex e se postava à porta do cinema, onde estava passando um filme chamado justamente A Fera”. Porém, nas versões DVD e web, aparece essa mesma cena descrita. Ao que tudo indica, provavelmente a cópia do então diretor não possui mais tal cena ou se trata apenas de pura digressão sua.
Filme: DAVID VAI GUIAR.
Ano: 1972.
Local: Teresina (Piauí).
Direção: Durvalino Couto.
Elenco: David Aguiar, Lina do Carmo, Pereira, Pierre Baiano, Josípio, José Aurélio, Paulo Mourão, Robin, Vitório, Nazaré Lages, Eleonora Paiva, Rubem Gordo, Pitanga, Ana Ferreira, Naire Vilar, Luizão Paiva, Edvaldo Nascimento, José Ferreira e outros atores não creditados.
Roteiro: Durvalino Couto.
Câmera: Arnaldo Albuquerque, Edmar Oliveira e Durvalino Couto.
Produção: Arnaldo Albuquerque e Durvalino Couto.
Duração: 16 minutos (Sem créditos) / 18min26s (Com créditos).
Situação: Conservado.
Notas:
(1) Nossa crítica a essas produções em super-8 é porque seus realizadores estimulam a transgressão criando assim problemas que futuramente vão se queixar. Ou seja, o problema reside naqueles que incentivam a transgressão (Ex.: Apologia ao uso de drogas). Quando esta se massifica e gera caos (Ex.: Cracolândia, os inúmeros viciados em entorpecentes etc.), os tais incentivadores do passado se eximem de toda culpa no presente e acusam a outros ad nauseam voltando a incentivar novas transgressões às novas gerações em um ciclo vicioso e pernicioso à sociedade. Tal como Theodor Adorno (Escola de Frankfurt) que, desejando a ruptura com os valores tradicionais do Ocidente buscando um “novo mundo, um novo homem”, incentivava os estudantes a se rebelar contra seus professores até que um certo dia seus próprios alunos invadiram sua sala e a destruíram (Para expulsá-los chamou prontamente a polícia que tanto criticava) fazendo jus à expressão feitiço virou contra o feiticeiro.
(2) Boa parte dos trechos entre aspas corresponde a uma entrevista concedida por Durvalino Couto e publicada em 2012 (Disponível em http://desenredos.dominiotemporario.com/doc/15-ent-DurvalinoCouto.pdf).
(3) No momento não conseguimos identificar qual seria o filme A Fera, pois não há paralelo algum nem no cinema nacional nem no internacional com esse título em 1972 ou antes desse ano. Muito provavelmente foi um nome inventado, pois era costume o Cine Rex fazer isso com alguns filmes.
(4) Músicas do lado 1 do LP The Dark Side of the Moon. Provavelmente as primeiras exibições privadas, em 1972, foram sem som ou ambientadas com outras músicas, uma vez que o LP do Pink Floyd foi apenas lançado em 1973.
(5) Os seis títulos são David vai Guiar, O Terror da Vermelha, Coração Materno, Miss Dora, Porenquanto e Tupi-Niquim. Saiu também um outro DVD com Nosferato no Brasil (De Ivan Cardoso e com Torquato Neto no elenco) e Di Cavalcanti (Filmado por Glauber Rocha, mostra o pintor Di Cavalcanti no caixão sendo velado no Museu de Arte Moderna).