Adão e Eva: do Paraíso ao Consumo (1972)

27/1/2017 – Atualizado em: 26/12/2018

O filme


Depois de uma fase escrevendo textos na coluna Geleia Geral do jornal Última Hora (Agosto de 1971 a fevereiro de 1972) e de atuar em produções cinematográficas no Rio de Janeiro ao lado dos diretores Luiz Otávio Pimentel e Ivan Cardoso, Torquato Neto decide fazer ele mesmo algumas produções da sétima arte em Teresina, sua terra natal. Tratava-se da última experiência artística dele (Nota 1) que tentava aniquilar a cilada que a linguagem dava à existência fazendo um cinema sem palavras sem, entretanto, ser mudo.

Cena do filme “Adão e Eva: do Paraíso ao Consumo”.
(1972 / Acervo de Arnaldo Albuquerque / Acervo digital Teresina Antiga / Foto por: Antônio de Noronha Filho)

Na capital piauiense entrou em contato com um grupo de artistas que lhe ajudou na feitura de Adão e Eva: do Paraíso ao Consumo. Os realizadores da película em questão seriam Edmar Oliveira, Carlos Galvão, Antônio de Noronha Filho e Arnaldo Albuquerque, muitos deles conhecidos por produzir o jornal alternativo Gramma (Nota 2).

Bastidores do filme “Adão e Eva: do Paraíso ao Consumo”.
No centro da imagem, Arnaldo Albuquerque filmando com a câmera super-8.
Ao fundo, a Ponte Ferroviária, babaçus e diversas pessoas no rio Poti e nas coroas.
(1972 / Acervo de Arnaldo Albuquerque / Acervo digital Teresina Antiga / Foto por: Antônio de Noronha Filho)

Para o elenco estava escalado o próprio Torquato Neto, como Adão. Para a personagem de Eva estavam atrás de uma atriz. Noronha Filho cursava Filosofia na antiga Faculdade Católica de Filosofia (FAFI), que antes de ser absorvida pela Universidade Federal do Piauí (UFPI) ficava em um prédio atrás da Igreja das Dores (Praça Saraiva). Elegeu para o papel sua colega de faculdade, recém-chegada da cidade de São Raimundo Nonato: Claudete Miranda Dias, hoje professora aposentada do curso de História da UFPI.

O local escolhido para as gravações foi uma das coroas do rio Poti, especificamente na região próxima à Ponte Ferroviária, inaugurada em 1969 pelo 2° Batalhão de Engenharia de Construção. Até o início da década de 1990, as coroas do Parnaíba e do Poti eram visitadas por muitos teresinenses que aos domingos iam tomar banho nas águas límpidas, jogar peladas e consumir bebidas alcoólicas. Nos anos 1970 eram, ao lado das partidas dos principais clubes de futebol da capital (River, Flamengo, Piauí e Tiradentes), uma opção de lazer que entrou em declínio devido ao surgimento de novos hábitos de entretenimento, à instalação dos shoppings centers e à alta concentração de poluentes nos rios.

Bastidores do filme “Adão e Eva: do Paraíso ao Consumo”.
Na imagem, Arnaldo Albuquerque.
Nota-se o rio Poti e a paisagem na outra margem ainda não urbanizada.
(1972 / Acervo de Arnaldo Albuquerque / Acervo digital Teresina Antiga / Foto por: Antônio de Noronha Filho)

O filme era muito simples com um roteiro na sequência começo, meio e fim. Segue a versão canônica do Gênesis bíblico, mas com uma releitura adaptada para aqueles anos 1970, sem intervenção divina, e abordando a sociedade de consumo e seus hábitos como “maus”.

Cena do filme “Adão e Eva: do Paraíso ao Consumo”.
Torquato Neto e Claudete Dias percorrendo o Centro de Teresina.  
(1972 / Acervo de Arnaldo Albuquerque / Acervo digital Teresina Antiga / Foto por: Antônio de Noronha Filho)

Adão está na coroa do Poti (O Paraíso) observando inquieto os animais em grupo quando se dá conta de sua solidão. Arranca, então, uma costela – na verdade, um talo de coco – e a lança em direção ao rio de onde surge inesperadamente Eva para ser sua companheira. Após o contato inicial, ambos se rolam na areia beijando-se ardentemente. Caminham, brincam e contemplam a natureza.

Até que o filme chega ao seu clímax: Eva aponta para a ponte e incentiva Adão a cruzar para a outra margem do rio. Os dois escalam o terreno e a câmera foca na frase “Brasil: Ame-o ou deixe-o” adesivada em um Fusca (O veículo era, na verdade, propriedade de Noronha Filho e servia para transportar elenco e equipe técnica).

Cena do filme “Adão e Eva: do Paraíso ao Consumo”.
(1972 / Acervo de Arnaldo Albuquerque / Acervo digital Teresina Antiga / Foto por: Antônio de Noronha Filho)

Os dois personagens chegam a um mundo novo representado ali pelo Centro de Teresina, desde aquela época repleto de casas comerciais, vendedores ambulantes e muita gente disposta a consumir. Sob o olhar dos curiosos transeuntes, observam o movimento e ingressam em uma loja de roupas com a placa Serpente saindo dali com vestimentas modernas.

Outro bloco e Eva está grávida e ao mesmo tempo entediada das atividades domésticas. Adão chega em casa após um dia cansativo de trabalho. Os dois discutem, brigam e atiram comida um no outro, não se recordando mais dos momentos felizes que viviam na coroa do rio Poti. A câmera muda o foco para os dizeres finais: “Toda sociedade tem o fim que merece”.

Cena do filme “Adão e Eva: do Paraíso ao Consumo”.
(1972 / Acervo de Arnaldo Albuquerque / Acervo digital Teresina Antiga / Foto por: Antônio de Noronha Filho)

Sumiço

Adão e Eva: do Paraíso ao Consumo foi gravado em super-8 mm, bitola fílmica que se popularizou no Brasil antes do lançamento por aqui dos primeiros vídeos analógicos (VHS). Como os fotogramas desse formato eram pequenos, se tornava difícil a edição motivo pelo qual o filme foi feito direto, sem cortes.

Consumiu de dois a três rolos de super-8 (Cada rolo equivalia a 3 minutos e 20 segundos) sendo que a duração estava em torno de 8 a 10 minutos aproximadamente.

Cena do filme “Adão e Eva: do Paraíso ao Consumo”.
Torquato Neto percorrendo o Centro de Teresina. 
(1972 / Acervo de Arnaldo Albuquerque / Acervo digital Teresina Antiga / Foto por: Antônio de Noronha Filho)

Após a gravação pretendia-se inserir músicas do álbum The Dark Side of the Moon, do grupo britânico Pink Floyd (Nota 3), para servir de plano de fundo uma vez que o formato originalmente não capturava áudio. Curiosamente algumas trilhas desse álbum, como Time e Breathe, foram usadas posteriormente no filme David Vai Guiar (1972).

No entanto, a inserção das músicas no filme jamais aconteceu. Isso porque ele desapareceu, adicionando mistério e várias histórias para seu sumiço. Segundo Noronha Filho, o filme foi enviado aos correios para ser copiado nos Estados Unidos e inexplicavelmente foi extraviado. Outra dá conta que uma amiga de Torquato Neto levaria uma cópia para receber efeitos sonoros adequados e esta teria sumido dentro de uma mala em uma das conexões do voo Rio-Londres. Já outra história diz que o original fora enviado de navio – também para inserção de som – e se perdera na Península Ibérica.

Cena do filme “Adão e Eva: do Paraíso ao Consumo”.
(1972 / Acervo de Arnaldo Albuquerque / Acervo digital Teresina Antiga / Foto por: Antônio de Noronha Filho)

Como o álbum do Pink Floyd só foi lançado em março de 1973, é muito provável que a única cópia do filme se perdeu após esse período e passou o ano de 1972 e boa parte de 1973 intacta. Isso explica porque alguns privilegiados chegaram a assistir a produção. Noronha Filho, por exemplo, exibiu sessões privadas em sua casa e no antigo Centro de Ciências da Saúde (Antigamente localizado na Avenida Frei Serafim) uma vez que era também professor de Medicina.

Certo mesmo é que restaram de Adão e Eva: do Paraíso ao Consumo somente as fotos de still tiradas na época por Antônio de Noronha Filho por meio de uma máquina Rolleiflex usando filme fotográfico de 36 poses. Várias dessas fotos foram distribuídas entre os realizadores e restam hoje cópias delas nos acervos de Claudete Dias, Carlos Galvão, Arnaldo Albuquerque (Quem as revelou a partir dos negativos e passou muito tempo com elas) e do próprio Noronha Filho.

Cena do filme “Adão e Eva: do Paraíso ao Consumo”.
(1972 / Acervo de Arnaldo Albuquerque / Acervo digital Teresina Antiga / Foto por: Antônio de Noronha Filho)

Das 36 fotos, somente 26 são conhecidas. Exatamente 10 permanecem perdidas, justamente as referentes às últimas cenas do curta-metragem com Adão e Eva em casa brigando. Como se tratava de filme de máquina fotográfica analógica, era comum algumas “queimarem” devido à superexposição de luz direta tornando-se, portanto, imprestáveis (Nota 4).

É importante dizer que há a possibilidade – remota? – do curta aparecer de uma hora para outra. Escondido em alguma cinemateca ou no acervo de algum colecionador em um lugar qualquer do planeta.

Cena do filme “Adão e Eva: do Paraíso ao Consumo”.
(1972 / Acervo de Arnaldo Albuquerque / Acervo digital Teresina Antiga / Foto por: Antônio de Noronha Filho)

Filme: ADÃO E EVA: DO PARAÍSO AO CONSUMO.
Ano: 1972.
Local: Teresina (Piauí).
Direção: Carlos Galvão.
Elenco: Torquato Neto e Claudete Dias.
Roteiro: Edmar Oliveira, Arnaldo Albuquerque e Carlos Galvão.
Argumento: Edmar Oliveira.
Fotos de still: Antônio de Noronha Filho.
Câmera: Arnaldo Albuquerque.
Produção: Antônio de Noronha Filho.
Duração: 8 a 10 minutos.
Situação: Perdido.

Notas:

(1) Torquato Neto se suicidou em 10 de novembro de 1972 no Rio de Janeiro.

(2) Todos os pesquisadores e os que participaram do filme afirmam atualmente que o nome do jornal era esse devido ao fato que era feito na grama das praças de Teresina. No entanto, o nome do jornal tinha uma nítida associação ao periódico da Ditadura Cubana iniciada por Fidel Castro chamado de Granma. Como se sabe, Edmar Oliveira, Carlos Galvão, Antônio de Noronha Filho e Arnaldo Albuquerque são conhecidos militantes de esquerda sendo este último, inclusive, admirador de Cuba e os filmes setentistas em super-8 feitos em Teresina eram uma tentativa de transgressão da sociedade capitalista, algo típico da esquerda nacional e mundial.

(3) As sessões privadas de exibição do filme eram acompanhadas de músicas desse álbum da banda Pink Floyd.

(4)  A história da ausência das 10 imagens foi contada pelo pesquisador Guga Carvalho. Porém, se a memória não falha, muitas das imagens referentes às últimas cenas do filme chegaram a ser vistas no anexo da tese de doutorado (Versão impressa em capa dura azul escura) de propriedade do professor Edwar de Alencar Castelo Branco titulada “Todos os dias de Paupéria: Torquato Neto e uma contra-história da Tropicália” (Recife: Universidade Federal de Pernambuco, 2004).