Londres na América / Oliveira Pearce & C. / Casa Dôta (1901-1987)

9/1/2017

Há uma história curiosa, conta o jornalista Max Gehringer, que na cidade do Rio de Janeiro da década de 1980, um badalado e caríssimo restaurante chamado Maxim’s havia sido inaugurado por um grupo de franceses em um dos metros quadrados mais caros da região. Logo um carioca bem criativo abriu uma barraca de cachorro-quente e mate gelado ao lado da franquia francesa. O nome do modesto empreendimento: Minim’s.

Histórias como essas se repetem em várias cidades do Brasil. Em Teresina, por exemplo, surgiu em 1901, na rua Simplício Mendes bem ao lado da Praça Saraiva, um estabelecimento comercial chamado Londres na América, pois sugeria trazer à capital tudo que se vendia na metrópole britânica. Consta no anedotário teresinense que alguém fez surgir ao lado um concorrente com o nome de Paris na América.

Estabelecimento Londres na América, de Manoel Thomaz Oliveira.
(1910 / FUNDAC / Acervo digital Teresina Antiga / Foto por: n/d)

Tratava-se de uma das casas comerciais mais tradicionais e surtidas da antiga Teresina. Foi obra do comerciante Manoel Thomaz de Oliveira, nome importante no Piauí já que foi um dos grandes acionistas da Companhia Fluvial de Navegação do Rio Parnaíba. Com a morte de Manoel Thomaz, os negócios ficaram a cargo de seus filhos Aphrodisio Thomaz de Oliveira – mais conhecido por Dôta de Oliveira ou simplesmente Dôta – e Agripino Oliveira, e do britânico Thomaz William Pearce. O local, que tinha o nome oficial de Oliveira, Pearce e C., passa logo depois a se chamar Casa Dôta, embora tivesse na fachada o nome completo do novo dono (Nota 1).

Dôta nasceu em Teresina, em 1891, e desde 1904 atuava como comerciante. Vereador pela capital em dois mandatos, foi também presidente da Associação Comercial Piauiense e diretor do Clube dos Diários. Administrou sua casa comercial até seu falecimento em 1964, mesmo ano que uma rua do bairro Monte Castelo passou a levar seu nome.

Anúncio da firma Oliveira, Pearce & Comp.
(1910 / Annuario Artístico e Commercial do Piauhy / Acervo digital Teresina Antiga)

A importância e grandiosidade da casa comercial pode ser medida pelo fato de possuir filial em Uruçuí – no sul do Piauí, às margens do rio Parnaíba – e por uma navegação fluvial própria, algo que só pessoas com muito dinheiro poderiam se dar ao luxo de ter. Com navegação própria muito provavelmente trazia de Parnaíba as mercadorias, pois consta que dessa cidade vinham vários navios mercantes do então Império Britânico tendo sido fundada na nortenha urbe piauiense a Casa Ingleza sendo o inglês James Frederick Clarck um dos seus grandes benfeitores.

Além disso, Londres na América exportava e importava de quase tudo, abastecendo a capital dos mais variados produtos. Funcionou também como depósito de cigarros e charutos, algo que não se deve estranhar já que era comum nos comércios do início do século XX produtos à base de tabaco e cal serem acomodados nos mesmos lugares onde haviam, por exemplo, roupas e gêneros alimentícios.

Casa Dôta, antigo estabelecimento Londres na América.
(1986 / FUNDAC / Acervo digital Teresina Antiga / Foto por: n/d)

Ameaça de tombamento e descaracterização intencional

Entre 1981 e 1986 aconteceu algo histórico: várias edificações de Teresina foram tombadas e/ou restauradas como a casa do Barão de Gurgueia (Atual Casa da Cultura), a COMEPI, o Clube dos Diários e a Escola Normal (Atual sede da Prefeitura Municipal). Iniciativa na época do Patrimônio Histórico, Artístico e Nacional do Piauí, da FUNDAC e da antiga Secretaria de Cultura, Desportos e Turismo do Piauí.

Foi um grande feito, embora atualmente exista um mau costume de se preservar apenas a fachada das edificações, sendo essa prática denominada pejorativamente de cidade cenográfica. Infelizmente esse hábito é defendido por pessoas ligadas ao Estado, Prefeitura e até por arquitetos renomados.

Aspecto da rua Simplício Mendes, entre a Paissandú e a Praça Saraiva, calçada em 1938 pela administração do prefeito Lindolfo Monteiro.
No lado esquerdo está a casa comercial Londres na América, parcialmente cortada na fotografia.
(1938 / Casa da Cultura / Acervo digital Teresina Antiga / Foto por: n/d)

Atuando em Teresina desde 1982, a professora e arquiteta pernambucana Alcília “Kaki” Afonso, ao lado da também arquiteta Ana Márcia, andava investigando o patrimônio material da capital e possíveis casas que ainda não haviam sido tombadas pelo Departamento de Patrimônio do Estado. Entre elas estava a Casa Dôta.

De acordo com a arquiteta Pamela Franco, a Casa Dôta possuía “características da arquitetura colonial e sob influência da ‘morada e meia’ da arquitetura maranhense(Nota 2) sendo importante a sua imediata preservação. Assim, um pouco antes do final da década de 1980, o imóvel teve uma proposta de tombamento que assustou de cara os proprietários.

Casa Dôta em processo de descaracterização.
(1986 / FUNDAC / Acervo digital Teresina Antiga / Foto por: n/d)

Àquela altura os proprietários eram a professora Dagmar Rosa (filha do ex-governador Miguel Rosa e esposa de Aphrodisio Thomaz de Oliveira – o Dôta), e suas filhas (Dulce Rosa de Oliveira e Doris Rosa de Oliveira). Mas foi José Maria Soares Ribeiro (Marido de Doris) (Nota 3) quem ficara desesperado com a notícia de tombamento. Temia morar nos fundos da casa ou ser despejado dela.

Calçadão da Simplício Mendes.
No lado esquerdo, a Casa Dôta.
(1986 / Acervo do IBGE / Acervo digital Teresina Antiga / Foto por: Aureliano Müller – Foto Müller)

Diante da “ameaça”, os detentores legais do imóvel chamaram um engenheiro da família e determinaram intencionalmente que se mudasse quase completamente a fachada da construção urbana para que se pudesse evitar o tombamento. De fato foi o que aconteceu.

Foram retiradas todas as esquadrias em arco-pleno das fachadas do imóvel e substituídas, como de costume, por esquadrias contemporâneas de ferro, descaracterizando a edificação.

Casa Dôta sem as portas e as janelas em arcos ogivais e com descaracterização bem acentuada.
(1987 / FUNDAC / Acervo digital Teresina Antiga / Foto por: n/d)

Tratou-se de um verdadeiro crime contra a memória da cidade de Teresina e, na época, não chegou a causar tanta repercussão, pois, igual a hoje, não possuíam os teresinenses uma educação patrimonial voltada a discutir e preservar os imóveis antigos.

Além da ignorância dos proprietários, contribuiu para a destruição a própria legislação que nada pune os donos por demolir ou descaracterizar os imóveis ao mínimo sinal de preservação vindo dos órgãos do patrimônio. Somado a isso há também a ideia errônea sobre a preservação de patrimônio histórico. Como bem disse o arquiteto Olavo Pereira da Silva Filho, “o tombamento não altera nenhum direito de propriedade, nem significa desvalorização comercial, ele é difundido como se fosse uma desvantagem, mas é exatamente o contrário, o tombamento vai é valorizar o bem”.

Casa Dôta em 2016 totalmente descaracterizada.
(2016 / Acervo digital Teresina Antiga)

Confira mais imagens da Casa Dôta em 1986

Edificação: Casa Dôta
Local: Esquina das ruas Simplício Mendes e Félix Pacheco.
Inauguração: 1901
Primeiro proprietário: Manoel Thomaz de Oliveira
Descaracterização: 1986

Notas:

(1) Explicação do parágrafo: Manoel Thomaz de Oliveira era natural do Rio Grande do Norte e inicialmente sua firma era em conjunto com seu imão Pedro Thomaz de Oliveira. Deixou como herdeiros dos seus negócios seus filhos Aphrodisio Thomaz de Oliveira e Agripino Oliveira, e o britânico Thomaz William Pearce, que se radicou no Piauí e se encarregou de estabelecer comércio com o Reino Unido. Por isso a firma tinha o nome de Oliveira, Pearce & Cia. Provavelmente, os negócios ficaram apenas nas mãos de Aphrodisio Thomaz de Oliveira passando o lugar a levar apenas seu nome.

(2) Morada e meia ou também meia-morada. Arquitetura típica dos sobrados da cidade de São Luís (Maranhão). Definição dada pelo Dicionário on-line Arkitekt Urbo: “Casa térrea, de frente de rua, cuja fachada tem uma porta lateral e duas janelas. Composta de sala, quarto, varanda e cozinha com distribuição típica. A sala e o quarto estão alinhados e ligados lateralmente à varanda por corredor. A varanda une-se à cozinha por um correr. Adequava-se aos antigos lotes urbanos estreitos. O corredor situava-se sempre em uma das divisas laterais. Se duplicada, tendo o corredor como elemento central, caracteriza a morada-inteira. Diferencia-se da tradicional casa de porta e janela, ou simplesmente porta-e-janela, basicamente pela presença do corredor, que vem trazer outras modificações […]”.

(3) José Maria Soares Ribeiro foi o 4º ocupante da cadeira número 12 da Academia Piauiense de Letras. O patrono da cadeira foi Antônio Coelho Rodrigues e atualmente a ocupa Wilson Carvalho Gonçalves. Nasceu em São Francisco do Maranhão em 19 de julho de 1923. Graduado em Ciências Jurídicas e Sociais, foi gerente do Banco do Brasil em São João dos Patos (MA), Barra do Corda (MA) e Corrente (PI), além de jornalista. Faleceu em 02 de julho de 1994 em Teresina.