Desastre da Cruz do Cassaco (1958)

2/4/2015 – Atualização em: 21/9/2023

O que é cassaco?

Muita gente quando ouve falar do Desastre da Cruz do Cassaco se pergunta a razão desse nome tão estranho. Cassaco é o nome de um gambá, muito comum na região Nordeste do Brasil e conhecido também pelo nome de mucura. É encontrado quase sempre sujo e possui cheiro desagradável. Popularmente ficaram assim conhecidos os trabalhadores que usavam sua força de trabalho na abertura de rodovias, ferrovias, açudes, pontes, entre outras obras. A associação ao animal se deve ao fato de que também viviam sujos de poeira ou barro e malcheirosos.

Muitos dos trabalhadores/cassacos eram retirantes e bastante pobres. Tinham precárias vestimentas e pouco para comer e beber. Eram alistados em grande número, principalmente nas obras de emergência contra a seca na primeira metade do século XX. Mesmo com trabalho, os retirantes ainda ganhavam pouco, sendo comuns relatos sobre graves doenças, suicídios e até consumo de carne humana para sobreviver.

Os cassacos foram importantes na abertura da rodovia federal 316 no Piauí, que liga Teresina a Picos e aos estados de Pernambuco e Alagoas. Mas a BR, em 1958, não estava totalmente concluída. Sequer tinha pavimentação asfáltica (Nem mesmo a zona urbana de Teresina possuía!) que só chegaria durante o governo do presidente Emílio Garrastazu Médici (1969-1974).

Desastre automobilístico na BR-316 em Teresina.
(1958 / Acervo da ALEPI/ Acervo digital Teresina Antiga / Foto por: n/d)

O acidente

1958 foi ano de Eleições Gerais (Governador, prefeito, senador, deputados estaduais e federais, vereadores) em todo o Brasil. Também foi o ano em que mais foram feitos alistamentos para os cassacos na região Nordeste. Fazia-se, então, a troca de voto por trabalho nas obras públicas. Todos certamente votariam no candidato da situação. Essa era uma das formas que os grupos oligárquicos encontravam para garantir eleições sem surpresas e mais alguns anos de mandato político. No Piauí, tal estratégia também foi utilizada. As oligarquias rurais dos Freitas Gayoso e dos Almendra Castelo Branco conseguiam assim se manter no poder político estadual durante vários anos.

Desastre automobilístico na BR-316 em Teresina.
(1958 / Acervo da ALEPI/ Acervo digital Teresina Antiga / Foto por: n/d)

Mas o rompimento do PTB estadual com os governistas do PDS (Deveu-se a promessas de barganha política feitas no pleito de 1955, mas que não foram cumpridas) e a posterior aliança com a UDN ameaçou tal poder. De um lado ficou o candidato a governador José Gayoso Freitas, filho do ex-governador e coronel oligárquico Pedro de Almendra Freitas. Do outro lado a chapa da UDN/PTB tendo como candidato ao Governo Estadual o campomaiorense Demerval Lobão. Esta última, embora de oposição, trazia em seus quadros também políticos oligarcas como Tibério Nunes, ligado à família dos Portella Nunes (Petrônio Portella, inclusive, estava nesta chapa para prefeito de Teresina). Também contava como candidato ao Senado outro membro da elite política do estado: o engenheiro e deputado federal Marcos Parente, fundador do Folha da Manhã, periódico que se dedicou exclusivamente a falar mal dos adversários representados pelo PDS.

Desastre automobilístico na BR-316 em Teresina.
(1958 / Acervo da ALEPI/ Acervo digital Teresina Antiga / Foto por: n/d)

A campanha política corria bem de ambos os lados. Até que no final, nas proximidades do pleito, Demerval Lobão e sua comitiva rumaram em uma viagem para comícios nas cidades de São Pedro do Piauí e Água Branca. A partir daqui a história é bastante conhecida. Três carros (Ford Mercury vermelho ano 1951, Ford F1 ano 1951, e Jeep Willis ano 1957) entraram pela BR-316 e nunca chegaram a seus destinos.

Como foi dito, a rodovia estava em obras e não tinha asfalto. Por esse motivo, quando algum carro passava soltava uma nuvem espessa de poeira o que comprometia muito a visibilidade dos veículos que vinham atrás. E quando os carros da chapa oposicionista estavam no Km 14, um deles, o Ford Mercury conduzido por José Raimundo Gomes e levando como passageiros os candidatos Demerval Lobão e Marcos Parente, além do advogado José Ribamar Pacheco e do médico Rubem Perlingueiro, ousou fazer uma ultrapassagem em um caminhão. Coberto pela nuvem de poeira, o condutor não viu uma caçamba do DER-PI (Departamento de Estradas de Rodagem do Piauí) e mais dezesseis cassacos que trabalhavam nas obras da BR-316. Resultado: uma batida violenta que matou na hora todos que estavam no Ford Mercury e mais seis trabalhadores da obra, além de deixar gravemente feridos os outros dez. Quem presenciou o local na época viu tremenda cena: corpos mutilados sendo transportados para o Hospital Getúlio Vargas.

Desastre automobilístico na BR-316 em Teresina.
(1958 / Acervo da ALEPI/ Acervo digital Teresina Antiga / Foto por: n/d)

Consternação estratégica

A tragédia rodoviária ganhou repercussão em todos os jornais do Piauí. Mas o Folha da Manhã, em particular, deu muito mais destaque ao desastre. Tinha um interesse especial em aproveitar as mortes de Demerval Lobão e Marcos Parente. A intenção era eleger os substitutos: Chagas Rodrigues, até então candidato a deputado federal, para o governo do Estado, e Joaquim Parente, que residia na cidade do Rio, mas com a morte do irmão Marcos Parente lançou candidatura ao Senado pelo estado do Piauí.

Os partidários do PTB e da UDN também utilizaram o acidente para ganhar votos da população. Até então ela estava comovida. Porém, como sempre acontece até hoje nas tragédias envolvendo a elite política e econômica do estado, a imprensa em geral tenta forçar a ideia de que “o Piauí todo está em luto” quando se sabe que boa parte não estava e seguia sua vida tranquilamente. A consternação era mais pela artificialidade dos jornais e da elite política do que pelo desastre em si.

Era uma ousadia da chapa oposicionista querer que seus novos candidatos ganhassem faltando poucos dias para o pleito. Porém, como se sabe hoje, Chagas Rodrigues e Joaquim Parente conseguiram se eleger e ainda arrastaram outros mais como Petrônio Portella, eleito prefeito de Teresina.

É digno de mencionar também que os jornais impressos de 1958 até hoje se referem aos trabalhadores das obras da BR-316 como outros mortos ou outras vítimas. Poucas vezes citavam seus nomes (Confira os nomes de todas as vítimas no final do artigo). Os membros políticos, ao contrário, sempre eram citados, além de alardeados constantemente como redentores do Piauí. Evidentemente era um exagero que se deveu mais às estratégias eleitoreiras em cima do acidente e à posição de destaque que ocupavam na sociedade.

Projeto de construção do Monumento da Cruz do Cassaco.
(1990 / Acervo digital Teresina Antiga) 

Monumento da Cruz do Cassaco: inauguração e descaso.

A imprensa piauiense sempre mencionava a tragédia como desastre ou catástrofe rodoviária. Mas com a inserção de um cruz rudimentar no local para sinalizar o infeliz evento, passou a ser chamada de “Desastre da Cruz do Cassaco“. Mesmo com a pavimentação asfáltica da BR-316 a cruz continuou lá por um bom tempo.

Depois de três décadas, a Prefeitura Municipal de Teresina, na gestão de Heráclito Fortes (1989-1992), decidiu construir uma edificação com dois pilares de concreto de mais ou menos oito metros de altura cada um, projetada pelo arquiteto Gustavo Almeida. Substituiu a velha cruz e foi inaugurada em 1991, sem muito alarde pela imprensa e pela população, contando mais com a presença dos familiares das vítimas.

Mas por incrível que pareça o monumento foi posto abaixo. Em 2014, durante as obras de duplicação da BR-316, a edificação foi simplesmente destruída e seus restos ficaram no chão. Nenhuma autoridade sequer fez algo antes ou depois da destruição deste patrimônio público. Cabe então uma pergunta crucial: se um monumento feito, principalmente, em memória da própria classe política do estado é tratado dessa forma, com negligência total, o que se pode esperar dos outros?  

Inauguração do Monumento da Cruz do Cassaco.
(1991 / Acervo digital Teresina Antiga / Foto por: n/d)

Movimento reerguido

Em 2022, encerraram-se as obras do trecho duplicado da BR-316 dentro da zona urbana de Teresina. Elas seguem agora em direção a Demerval Lobão e, futuramente, ao entroncamento das BRs 316 e 343 no povoado Estaca Zero. Com isso, foi observado que o Monumento da Cruz do Cassaco foi reerguido no mesmo lugar que foi inaugurado.

Edificação: Monumento da Cruz do Cassaco
Local: Km 14 da BR-316 – Teresina (PI)
Inauguração: 4 de setembro de 1991
Realização: Prefeitura Municipal de Teresina
Destruição: 2014
Reativação: 2022

Homenageados (Por ordem alfabética):
– Demerval Lobão Veras (Candidato ao Governo do Estado);
– Francisco Fernandes da Silva (Trabalhador das obras da BR-316);
– João Francisco da Silva (Trabalhador das obras da BR-316);
– José Marques Cardoso (Trabalhador das obras da BR-316);
– José Mendes da Silva (Trabalhador das obras da BR-316);
– José Raimundo Gomes (Motorista);
– José Ribamar Pacheco (Advogado);
– Manuel Paulino de Aguiar (Trabalhador das obras da BR-316);
– Marcos Santos Parente (Candidato ao Senado);
– Rubens Perlingueiro (Médico);
– Valdemar da Silva (Trabalhador das obras da BR-316);